Pode parecer à primeira vista, mas este não é um debate meramente conceitual.
Em um momento em que o “capitalismo de stakeholders” deixa de ser bandeira de um restrito nicho de organizações preocupadas com questões sociais e ambientais para alcançar toda a economia tradicional, é fundamental refletirmos sobre as implicações práticas dessa mudança de paradigma.
Temos assistimos a reiteradas manifestações de expoentes do capitalismo e da academia, reforçando a mensagem de que a função da empresa é “gerar valor a todos os stakeholders” (Business Roundtable, 2019), “gerar valor compartilhado e sustentável” (World Economic Forum, 2020), “prover soluções lucrativas para problemas das pessoas e do planeta” (British Academy’s Future of the Corporation Project). Não há mais como negar que a sociedade, aí incluídos investidores e consumidores, espera um protagonismo cada vez maior das empresas na solução de problemas socioambientais. Essa tendência se evidencia de forma crescente na pesquisa anual Edelman Trust Barometer. Na edição de 2021, 66% dos entrevistados afirmaram que “CEOs should take the lead on change rather than waiting for government to impose change on them” e 65% que “CEOs should hold themselves accountable to the public and not just to the board of directors or stockholders”.
Mas, em termos práticos, o que essa tendência significa para as empresas e, em particular, para seus administradores (conselheiros e diretores)? O compromisso com a geração de valor para todos os stakeholders é uma escolha estratégica, um dever ético ou um dever legal, juridicamente exigível? Em se caracterizando como dever legal, seria ele instrumental à preservação de valor para os acionistas no longo prazo ou um novo dever fiduciário, não mais apenas perante o investidor, mas perante os diferentes públicos afetados pela atividade empresarial?
A resposta a esses questionamentos tem consequências relevantes. Se, por exemplo, entendermos o ESG como uma obrigação legal autônoma dos administradores, diferentes stakeholders passam a ser titulares de novos direitos, não especificamente previstos em lei. E podem, inclusive através de representantes legitimados, como associações, sindicatos e o Ministério Público, exigir judicialmente que empresas ajam ou abstenham-se de agir em determinada direção. Um exemplo seria uma ação civil pública exigindo que empresas com plantas localizadas em um raio de 50km de um presídio passassem a contratar uma cota de presidiários para seus quadros. Por mais que essa iniciativa se encaixe perfeitamente no “S” do ESG, e seja uma causa relevante a ser voluntariamente abraçada por algumas empresas, é difícil imaginar que alguém possa cobrar judicialmente essa medida sem previsão legal expressa.
Vários estados norte-americanos, além de países como Itália, Colômbia, Equador e Peru adotaram leis que instituem as Benefit Corporations, seja como uma qualificação legal de tipos societários pré-existentes, seja como um novo modelo de empresa. As empresas que optam por assim se constituir ou qualificar assumem obrigações legais firmes perante seus stakeholders. Como resultado, seus administradores assumem um dever fiduciário não apenas perante a empresa, mas também perante os demais públicos afetados.
Embora nossa Lei das S.A., extremamente avançada neste particular, tenha previsto que, no exercício de suas atribuições, o administrador deve satisfazer “as exigências do bem público e da função social da empresa”, esse princípio nunca se consolidou como gerador de novas obrigações perante stakeholders, além daquelas concretizadas em leis próprias (CLT, Código do Consumidor, legislação ambiental, etc.). A jurisprudência, aliás, tem atribuído a ele uma eficácia ainda mais restrita, estabelecendo que a função social da empresa se realiza por meio da geração de empregos e do pagamento de impostos. Muitas vezes, o princípio da função social é invocado como mero reforço argumentativo de obrigações trabalhistas e ambientais existentes.
Nesse cenário, faz sentido que também no Brasil estejamos discutindo um Anteprojeto de Lei que institui a qualificação das Sociedades de Benefício, aquelas que tenham por objeto “gerar impacto social e ambiental positivo”, mantendo “órgãos de administração com competência vinculada à tutela mais ampla dos interesses atingidos pela atividade empresarial”. No que diz respeito aos deveres dos administradores, o anteprojeto estabelece que deverão avaliar os efeitos econômicos, sociais e ambientais da atividade desenvolvida, buscando o impacto positivo.
Tudo indica, portanto, que não existe, em nossa legislação atual, uma obrigação genérica dos administradores de mitigar impactos negativos ou gerar impactos positivos para outros stakeholders além dos acionistas. O que existem são regras (concretas e específicas) que tutelam direitos e interesses de diferentes stakeholders e o meio ambiente. E princípios (gerais e abstratos) que embasam e direcionam a interpretação e aplicação dessas regras, dentre eles, a função social da empresa prevista na Lei das S.A..
Seria a agenda ESG, então, uma escolha dos administradores? Uma estratégia de negócio, que alinha a solução de problemas socioambientais a retornos de investimento competitivos? Estratégias dessa natureza, sem dúvida, têm alto poder transformador, alinham-se às expectativas da sociedade e já são adotadas por importantes investidores. Uma abordagem relevantíssima, mas que não assume ESG como um dever e sim como uma oportunidade.
Outra perspectiva possível seria considerar ESG como um dever ético das empresas. Sem adentrar digressões filosóficas, entendo que as empresas têm, sim, o dever de “fazer a coisa certa”, para além de gerar lucro cumprindo a lei, como defendia Milton Friedman e atualmente advogam outros estudiosos, que consideram arriscado e contraproducente atribuir às empresas a responsabilidade pela solução de problemas sociais e ambientais, eventualmente eximindo os governos eleitos para o desempenho dessa função (e.g. Lucian Bebchuk e Roberto Tallarita – The Illusory Promise of Stakeholder Governance, 2020).
Mas, enfim, a existência de entidades dotadas de personalidade jurídica depende de uma “licença social”, que se baseia na premissa de que sua existência trará mais benefícios do que prejuízos à sociedade. Por que a civilização haveria de tolerar um modelo de organização com efeito involutivo? Porém, a discussão sobre o balanço entre externalidades positivas e negativas é extremamente complexa. E, de todo modo, os deveres éticos não são dotados de mecanismos de enforcement legal, ou seja, não criam per se deveres exigíveis para os administradores.
Entretanto, decisões empresariais que desconsideram aspectos éticos e socioambientais podem dar causa a boycotts (represálias) ou buycotts (apoio) de consumidores, investidores, empregados e da sociedade em geral. Podem ocasionar desastres ambientais e outros enormes prejuízos de reputação e credibilidade. Essas e tantas outras consequências não-jurídicas destroem valor do acionista, muitas vezes em maior grau do que a violação de leis.
E é aqui que a “onda ESG” parece influenciar significativamente a interpretação do dever fiduciário dos administradores, expandindo o que hoje se entende por diligência. É razoável entendermos que a diligência esperada de um administrador no “capitalismo de stakeholders” foi ampliada em relação à interpretação que até este momento vinha sendo atribuída a esse dever.
Segundo o padrão de diligência estabelecido pela business judgement rule, devem ser protegidas da revisão por órgãos reguladores e pelo Poder Judiciário as decisões gerenciais que se provem informadas, refletidas e desinteressadas (despidas de interesses diversos do interesse da empresa). Esses três adjetivos, que traduzem a observância dos deveres fiduciários do administrador, devem hoje ser compreendidos tendo em vista o conjunto maior de stakeholders e não apenas os acionistas.
Para que o administrador esteja adequadamente informado sobre riscos e oportunidades, por exemplo, é preciso mapear os temas ESG relevantes para a companhia, identificar seus principais stakeholders e, idealmente, ouvir o que eles têm a dizer para/sobre a organização. Ter um olhar externo muito mais apurado do que as práticas hoje consolidadas de gestão empresarial oferecem. Tomar decisões refletidas significa levar em consideração seus impactos para os diferentes públicos afetados e para o meio ambiente. E fazê-lo de forma desinteressada significa buscar o equilíbrio entre os interesses dos acionistas e desses diferentes públicos.
São novos processos de tomada de decisão empresarial, que exigem novas ferramentas, novas competências e novos comportamentos das lideranças.
À primeira vista, portanto, parece fazer sentido considerar que os aspectos ESG alteraram o dever fiduciário dos administradores, não porque os stakeholders passaram a ser titulares de direitos não previstos em lei. Mas porque o dever de diligência para/com a companhia foi ampliado a partir do momento em que ficou claro que a negligência dos aspectos ESG destrói valor do acionista e a geração de valor compartilhado sustenta o valor do investimento no longo prazo. Como afirmou Larry Fink em sua carta aos CEOs deste ano, “we have long believed that our clients, as shareholders in your company, will benefit if you can create enduring, sustainable value for all of your stakeholders”.
Nesse contexto, parece fazer sentido considerarmos que ESG pode ser, simultaneamente, uma oportunidade de negócio, um dever ético e um dever legal de diligência do administrador, instrumental à preservação do valor para o acionista no longo prazo e, portanto, exigível pelas vias jurídicas adequadas – pelo acionista.
E os demais stakeholders? Esses podem – e devem – promover e defender seus interesses pelos diferentes meios de pressão disponíveis, desde a decisão de compra, passando pelos contatos diretos com a empresa e por manifestações públicas contrárias ou favoráveis a determinadas decisões empresariais, como temos visto com crescente frequência. Esses movimentos são salutares, não raro mais eficazes do que medidas judiciais, e contribuem para o avanço das empresas em sua jornada ESG.
As reflexões aqui compartilhadas não são conclusões definitivas, mas uma tentativa de estruturar este relevante debate, com o objetivo de fortalecer – e não permitir que se esvazie em palavras de ordem – a agenda ESG.
*Claudia Pitta é consultora e professora de Ética Organizacional e Governança, fundadora da Evolure Consultoria, mentora e sócia da plataforma digital CompliancePME, Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial – IBRADEMP e co-coordenadora de sua Comissão ESG.
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